Livro resenhado:DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução de
Beatriz Medina. São Paulo, Boitempo, 2006. ISBN: 85-7559-087-1 [imagem: Michael
e a paisagem. Favela da Rocinha, Rio de Janeiro. Foto da capa do livro]
Um mundo dominado pelas favelas resenha de Erminia Maricato.
Planeta Favela oferece contribuição ímpar para desvendar a
desconhecida e gigantesca escala de favelização e de empobrecimento das cidades
do chamado "Terceiro Mundo". Considerando-se que a população das
favelas cresce na base de 25 milhões de pessoas a cada ano – conforme lembra
Mike Davis ao citar os dados da UN-Habitat – e que as mais altas taxas de
urbanização são observadas nos países pobres, que eram, ou ainda são,
predominantemente rurais, esse processo diz respeito à maioria da população do
planeta. Contribuições como a deste livro tornam cada vez mais difícil ignorar
a dimensão do fato e tentar dar a ele tratamento pontual, com enfoque em best
practices (boas práticas) como tem tentado o establishment das agências internacionais
de desenvolvimento.
Davis revela que, ao contrário de aliviar o problema, essas
instituições, especialmente o Fundo Monetário Internacional (FMI), que impôs os
Planos de Ajuste Estrutural (PAEs) aos países do "Terceiro Mundo",
foram cruciais na explosão da pobreza responsável pelo desemprego de 1 bilhão
de pessoas, ou um terço da mão-de-obra dos países do Sul no final dos anos
1990, segundo dados da CIA, citados pelo autor.
Em vez das cidades de ferro e vidro, sonhadas pelos
arquitetos, o mundo está, na verdade, sendo dominado pelas favelas. Os números
que abundam ao longo da obra não são novos, embora nunca tenham sido
apresentados juntos e com tal ênfase. A tendência ao empobrecimento urbano vem
sendo alertada por numerosos autores e instituições, muitos dos quais presentes
na extensa bibliografia final.
Por que reconhecer que este livro é forte instrumento para
derrubar essa barreira e iluminar os problemas urbanos e grande parte de suas
causas? O primeiro motivo está na abrangência ampla do diagnóstico. O autor
tenta mostrar que há tendências, no processo de urbanização recente, que são
universais, apesar de se tratar de diferentes países. Em um estilo direto e,
por vezes, chocante, Davis valoriza o conhecimento empírico e é pouco dado a
longas abstrações ou desenvolvimento conceitual, o que revela sua origem
proletária e de militante de esquerda. Seu trabalho tem finalidade militante, e
o estilo contraria a abstração e o distanciamento usuais na maior parte dos
trabalhos acadêmicos.
Como já foi mencionado, uma sucessão de dados numéricos e de
informações qualitativas flui como uma torrente a tirar o fôlego do leitor. O
tema do crescimento e do empobrecimento das cidades do "Terceiro
Mundo" é cercado e abordado por meio de inúmeras entradas. A formação de
“superurbanizações” e “megacidades” – que podem merecer a alcunha de “leviatã”,
como a região que engloba São Paulo, Rio de Janeiro e Campinas– abre uma longa
lista de temas como por exemplo o crescimento de favelas provocado por guerras,
expulsões catástrofes, recessão econômica (como no caso da América Latina),
alto crescimento econômico e urbano (como nos casos da Índia e da China),
segregação, racismo; tragédias decorrentes de desmoronamentos, enchentes,
incêndios, terremotos (que vitimam sobretudo os pobres); áreas contaminadas, explosões
tóxicas; os males do transporte rodoviarista como a poluição do ar e os
acidentes de trânsito, entre outros.
A “crise sanitária” – tratada na seção “Viver na merda” –
mereceu uma descrição dramática ilustrada por dados sobre centenas ou milhares
de habitantes de favelas que disputam apenas uma latrina em algumas cidades da
África ou da Ásia. Aborda-se ainda o impacto da carência de água, ou o
altíssimo preço que os pobres pagam por ela.
Davis lembra que, mesmo em circunstâncias trágicas como as
mencionadas, a orientação implementada pelo FMI e pelo Banco Mundial foi a da
privatização do saneamento. A água, assim como a “defecação humana”, foi
transformada em negócio global, inclusive em cidades nas quais a população mal
tem recursos sequer para comer.
O “big bang da pobreza” tem suas raízes quando, entre 1974 e
1975, o FMI e o Banco Mundial reorientam as políticas econômicas do Terceiro
Mundo, abalado pelos preços do petróleo. A
orientação aos países devedores para abandonar suas estratégias de desenvolvimento
foram claramente explicitadas no Plano Backer, em 1985. Davis classifica o
impacto dessa direção na América Latina como “maior e mais longo do que a
Grande Depressão” e, considerando-se a realidade das décadas que ficaram
conhecidas como décadas perdidas, ele sem dúvida não está exagerando.
O Brasil, por exemplo, cresceu 7% ao ano de 1940 a 1970. Na
década de 1980, cresceu 1,3%, e na década de 1990, 2,1%, segundo o IBGE. Ou
seja, o crescimento econômico do país, nas duas últimas décadas do século XX,
não conseguiu incorporar nem mesmo os ingressantes da População Economicamente
Ativa (PEA) no mercado de trabalho, o que acarretou consequências dramáticas
para a precarização do trabalho e, consequentemente, também para a crise urbana
(1).
Quem acompanha a vida de qualquer grande cidade no Brasil é
testemunha do crescimento explosivo das periferias abandonadas ou da
favelização a partir do início dos anos 1980. Não que o ovo da serpente não
estivesse lá antes disso. As favelas do Rio de Janeiro e de Recife surgiram no
final do século XIX e começo do século XX, quando uma parte da mão de obra
escrava libertada ficou sem alternativa de moradia (o restante passou a viver
de favor). Décadas se passaram, e nem o trabalho passou à condição absoluta e
geral de mercadoria, nem a moradia, como acontecera no capitalismo central.
Entretanto, o aumento do desemprego e da pobreza urbana a
partir dos anos 1980 contribuiu para mudar a imagem das cidades no Brasil: de
centros de modernização que se destinavam a superar o atraso e a violência
localizados no campo, passaram a representar crianças abandonadas, epidemias,
enchentes, desmoronamentos, tráfego infernal, poluição do ar, poluição dos
rios, favelas e...violência. Há trinta anos, o que não constitui período muito longo,
não se temia a violência urbana; as cidades eram relativamente pacíficas. Para
quem viveu apenas na cidade formal e evitou perceber o que estava acontecendo,
a violência serviu de alerta, como a ponta do gigantesco iceberg. As taxas de
homicídio no Brasil, segundo o IBGE, passaram de 17,2 mortos para cada 100 mil
habitantes, em 1980, para 35,9 mortos em 1989, e, finalmente, para 48,5 em
1999.
Em algum momento, em meados dos anos 1990, a professora Maria
da Conceição Tavares, ao participar de uma banca de doutorado na Unicamp,
alimentou a idéia de que, para o capital, na era da globalização, havia gente
sobrando, ou melhor, que parte da força de trabalho, em vez de exército
industrial de reserva, seria “óleo queimado”. A lembrança desse debate veio a propósito
de expressões usadas por Mike Davis que vão nessa linha: “fardo humano”, “humanidade
excedente”, “massa permanentemente supérflua”. Até mesmo o acesso a essa terra
gratuita, situada em meio adverso, obtida por meio das invasões, deverá acabar. Essa
é, segundo Davis, a verdadeira crise do capitalismo, e nada, segundo o autor,
parece apontar para a mudança desse quadro. O livro se conclui sem deixar
resquício de esperança, sobretudo ao chamar a atenção para a criminalização das
favelas, agora no foco dos estrategistas militares norte-americanos.
Essa falta de saída ou a ausência de qualquer proposta tem
gerado críticas ao trabalho de Davis. Não é necessário que um texto que
contenha denúncias apresente propostas. Como já enfatizamos, o pensamento
crítico é indispensável para desmontar a falsa representação da realidade, que
serve a determinados interesses. O texto, entretanto, pode alimentar uma
atitude contrária àquela que pretende Davis e promover o medo em relação às
cidades e às pessoas que moram nela. Essa crítica partiu de Tom Angotti quando
se referiu ao artigo que deu origem a este livro (2). Angotti acusa Davis de
promover uma visão antiurbanista ou anticidade, classificando-o no time dos
TINA (There Is No Alternative; Não Há Alternativas, em português), expressão
usada para se criticar uma atitude que é comum entre acadêmicos e ativistas.
Ele questiona a falta de atenção para com os movimentos sociais em todo o mundo
e a tendência de vê-los como “mero produto da informalidade urbana e do paroquialismo”.
De fato, em sua crítica demolidora, Davis inclui propostas de
urbanização de favelas, de microcréditos, de regularização fundiária, de
construção por conta própria, entre outras. As críticas são pertinentes, mas
deixam de considerar especificidades históricas e geográficas que alimentam
muitas lutas sociais.
Davis aponta corretamente o caráter reformista ou, não pouco
freqüentemente regressivo, de muitas das propostas apontadas como soluções para
os problemas habitacionais. Mas a busca de alternativas ou exemplos de soluções
nem sempre leva à cooptação ou à acomodação. Muito freqüentemente, mostrar que
esses problemas têm soluções que estariam à mão se houvesse mais justiça social
é alimento fundamental para o avanço da luta democrática. Apesar de todos os
revezes, o Brasil também apresenta muitos aspectos que alimentam a esperança de
mudança.
O movimento pela reforma urbana, que reúne entidades
profissionais, acadêmicas, de pesquisa, ONGs, funcionários públicos, além das
entidades nacionais que lutam pela moradia, são uma das características
positivas da sociedade brasileira na conjuntura atual. Esse movimento social
conquistou a aprovação de leis importantes como o Estatuto da Cidade (lei n.
10.257, em 2000), a Lei do Fundo Nacional de Moradia Social (lei n. 11.124, em
2005), conquistou ainda a criação do Ministério das Cidades (ele era uma
reivindicação que vinha sendo feita havia mais de dez anos). Com ele, o
movimento acabou se fortalecendo, devido à promoção das Conferências Nacionais
das Cidades, processo que teve início nos municípios, envolveu todos os estados
da federação e culminou em Brasília com a participação de mais de 2500
delegados, dos quais 70% foram eleitos nas Conferências Estaduais e o restante
indicados por entidades nacionais. A primeira conferência das cidades, em 2003,
abrangeu a participação de mais de 300 mil pessoas para debater princípios,
diretrizes e prioridades da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. A
segunda, em 2005, aprofundou as propostas.
Esses avanços são afetados mas sobrevivem à crise partidária eclodida em 2005 que evidenciou ter o Partido dos Trabalhadores lançado mão de expedientes condenáveis que fazem parte da política institucional no Brasil.
Esses avanços são afetados mas sobrevivem à crise partidária eclodida em 2005 que evidenciou ter o Partido dos Trabalhadores lançado mão de expedientes condenáveis que fazem parte da política institucional no Brasil.
Entretanto não podemos afirmar que existe uma clara reversão
do processo de aprofundamento dos problemas urbanos. Essas conquistas são
relativamente recentes e as mudanças são lentas, já que envolvem uma cultura
histórica – ou de raízes escravistas – de exclusão social. A esperança está
assentada em fatos concretos, mas Davis acerta quando remete a fonte principal
das mazelas às forças globais dominadas por interesses financeiros e garantidas
militarmente pelos Estados Unidos ou por aquilo que David Harvey denomina de
Novo Imperialismo.
Notas
1Ver a respeito J. Mattoso, O Brasil desempregado. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 1999.
2O artigo
em questão é: “Planet of Slums” (publicado originalmente em New Left Review, n.
26, mar.-abr. 2004, e incluído, com o título “Planeta de favelas”, em
Contragolpes: seleção de artigos da New Left Review, organizada por Emir Sader
e publicada pela Boitempo em 2006). A crítica pode ser encontrada em T.
Angotti, “New anti-urban theories of metropolitan region: ‘Planet of Slums’ and
apocalyptic regionalism” (Kansas City, Conference of the Association of
Collegiate School of Planners, 2005).
O
presente texto é a Apresentação do livro de Mike Davis
Hermínia Maricato, arquiteta, professora da FAU-USP.
Hermínia Maricato, arquiteta, professora da FAU-USP.
Fonte: http://www.vitruvius.com.br/resenhas/textos/resenha163.asp
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