Certamente
um grande tema para os vestibulares de verão 2016. No final de maio de 2016, o estupro coletivo de uma adolescente de
16 anos no Rio de Janeiro foi o principal assunto de várias manchetes
brasileiras. Não só o corpo da vítima
foi violado por 33 homens como imagens do ato foram registradas e
divulgadas nas redes sociais pelos próprios criminosos.
Em
entrevista ao Fantástico, a adolescente comentou que foi hostilizada por
milhares de pessoas em redes sociais, e inclusive foi tratada como culpada por
parte dessas pessoas incluindo o primeiro delegado designado ao caso.
É por conta desse
tipo de reação agressiva que grande parte das vítimas não denuncia os estupros
e outros tipos de violência que sofre. E não são poucas: a cada uma hora e meia,
uma mulher morre no Brasil por causas relacionadas à violência, em sua maioria,
cometidas por homens, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Mas
por que quando um estupro acontece, a primeira coisa que se passa pela cabeça
das pessoas é se questionar se a vítima está falando mesmo a verdade?
Certamente não é o que ocorre com outros crimes, a não ser que você duvide toda
vez que alguém afirma ter sido vítima de um assalto ou roubo. A resposta é
simples: por conta da cultura do estupro, que é muito enraizada na nossa
sociedade.
Uma
série de mitos sobre o estupro e a cultura que o perpetua é disseminada
diariamente. Você provavelmente já contribuiu para isso ocorrer, mesmo sem
querer.
Você
pode até ter opinião divergente da que será exposta aqui abaixo, porém
dificilmente com ela você se dará bem numa redação do vestibular ou até mesmo
num relacionamento com uma mulher. Talvez até você encontre um homem com
opinião semelhante, tudo bem, mas mulher será bem difícil.
1 - O que é a
cultura do estupro?
O termo foi cunhado
na década de 1970 por feministas americanas e, de acordo com o Centro das
Mulheres da Universidade Marshall, nos Estados Unidos, é utilizado para
descrever um ambiente no qual o estupro é predominante e no qual a violência
sexual contra as mulheres é normalizada na mídia e na cultura popular.
Ao
disseminar termos que denigrem as mulheres, permitir a objetificação do corpos
delas e glamourizar a violência sexual, a cultura do estupro passa adiante a
mensagem de que a mulher não é um ser humano, e sim uma coisa. "Vivemos em
uma sociedade patriarcal que considera que nós mulheres somos ou sujeitos de
segunda categoria, ou em alguns casos, que não somos sujeitos e podemos ser
utilizadas ou destruídas", explica Izabel Solyszko, que é professora,
assistente social e doutoranda em Serviço Social na Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ).
2 - A cultura do
estupro começa no nascimento
Quando
uma família dá boas-vindas a um bebê, o recém-nascido vem com várias
expectativas: se for menino, espera-se que ele seja agressivo; se for menina,
espera-se que seja delicada. São scripts pré-determinados para cada gênero.
"O conceito de gênero surge para questionar a ideia de uma essência ou
natureza que explique os comportamentos", diz a pesquisadora Jane Felipe
de Souza, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "É essa
necessidade de se pautar em aspectos biológicos para justificar diferenças, as
colocando como desigualdade, inferioridade, que o conceito de gênero procura
combater."
Como
aponta Arielle Sagrillo, doutoranda em psicologia forense na Universidade de
Kent, na Inglaterra, a sociedade cria expectativas muito grandes para ambos os
gêneros. "Não permitimos que as crianças e adultos transitem entre esses
espaços. Desde cedo dizemos a esses sujeitos o que eles devem ser, antes mesmo
que possam descobrir o que querem, o que lhes afeta e como lidam com suas
próprias emoções", afirma.
Dentro
das expectativas, observa a advogada americana Reshma Saujani, os meninos são
criados para serem corajosos e se arriscarem, enquanto as meninas são criadas
para buscarem a delicadeza e a perfeição. Da mesma forma, espera-se que eles
sejam mais agressivos ("Homem de verdade não chora", não é mesmo?) e
que elas se sintam responsáveis — pela casa, pelos filhos, pelo companheiro e
até mesmo pelas violências que sofrem.
"Os
homens são ensinados a usarem a agressividade de maneira violenta, desde a
infância são estimuladas a vivenciarem sua sexualidade até um ponto de serem
reconhecidos como pessoas que 'precisam de sexo', 'que perdem a cabeça por
sexo', que se tornam praticamente 'irracionais' quando o assunto é sexo",
explica Solyszko. "Isso faz com que as pessoas pensem que o estupro é uma
questão de sexo e sexualidade quando o estupro é uma questão de violência
porque se trata de uma agressão bárbara e brutal que invade o corpo de outra
pessoa."
3 - Existem vários
mecanismos que propagam a cultura do estupro
Pense
nos comerciais aos quais você assistiu recentemente. Agora se concentre
naqueles que possuem presença feminina. Reflita ainda mais: em quantos deles as
mulheres aparecem como um simples corpo para agradar os homens? Quantos deles
contam com piadas relacionadas às aparências delas?

4 - Você também
contribui com a cultura do estupro
E
não precisa ser um estuprador para que isso aconteça. Ao consumir músicas que
denigrem a mulher e disseminar vídeos, imagens, comentários e piadas sexistas,
por exemplo, você contribui para que a objetificação da mulher seja reforçada.
"Nessa cultura machista que só pode se sustentar pela existência de uma
sociedade patriarcal, são diversos os mecanismos que vão das piadas que nos
desqualificam para dirigir, para ser engenheiras, para ser presidente do país
até a violência sexual no transporte público e nas ruas", pondera Izabel
Solyszko.
Vale
ressaltar que a violência contra a mulher não se restringe ao estupro. Segundo
uma pesquisa realizada pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular,
podem ser consideradas formas de assédio cantadas ofensivas ou com apelo sexual
indesejado; coerção; a violência física; a desqualificação intelectual e a
violência sexual, que vai desde o toque sem consentimento até o estupro. Dados
do Think Olga mostram que 48% dos assédios são verbais e 68% deles ocorrem
durante o dia.
5 - O estuprador
pode ser um cara normal
Existem
alguns mitos em torno dos estupradores, sendo os principais deles o de que o
agressor é uma pessoa estranha e o segundo de que é um ser cheio de problemas
psicológicos. Nenhuma dessas afirmações são verdadeiras.
Um
levantamento realizado pelo IPEA em 2014 aponta que 24,1% dos agressores das
crianças são os próprios pais ou padrastos, e 32,2% são amigos ou conhecidos da
vítima. Isso sem contar casos de violência contra a mulher dentro de
relacionamentos como namoros e casamentos, onde as linhas entre o consensual e
a violência são mais nebulosas.
Além
disso, de acordo com Arielle Sagrillo, os estudos que foram feitos sobre
estupradores até o momento não identificaram nenhum tipo de patologia. "O
que leva um sujeito a cometer um estupro pode ser uma série de coisas. Entre
elas, um não entendimento de que o que está fazendo é violência, não ver seu
ato como violência sexual, e isso tem relação com a educação. É uma questão
cultural", afirma Sagrillo.
Ela
explica ainda que existem várias "crenças disfuncionais" em relação
às mulheres que colabora para que os agressores cometam a violência. "Só é
estupro se for em um beco escuro", "uma mulher se comportando ou
vestindo uma roupa está pedindo para ser estuprada", "mulheres
secretamente desejam que o estupro aconteça" e "o não quer dizer sim,
ela deve estar fazendo charme", são alguns deles.
6 - A vítima nunca
é a culpada
Como
reforça Izabel Solyszko, "independentemente do nosso comportamento e da
nossa aparência, nada, absolutamente nada (nem que eu seja garota de programa,
nem que eu seja promíscua, nem que eu esteja bêbada, nem que eu esteja sozinha
com vários homens em um quarto), realmente nada vai justificar uma violência
contra mim".
No
livro Missoula, de Jon Krakauer, a promotora Suzy Boylan pondera que o estupro
é o único crime em que presume que a vítima esteja mentindo. "Se uma
pessoa é assaltada num beco, ficaríamos céticos com o depoimento da vítima só
porque não havia testemunha ocular? Nós iríamos duvidar da vítima de um roubo
porque ela deixou a porta de casa destrancada?", questiona.
O
silenciamento e a culpabilização das vítimas são alguns dos principais
artifícios da cultura do estupro. "Se o sigilo falha, o agressor ataca a
credibilidade de sua vítima. Se não consegue silenciá-la totalmente, ele tenta
se certificar de que ninguém lhe dê ouvidos. Para tanto, convoca um
impressionante esquadrão de argumentos, da negação mais descarada à
racionalização mais sofisticada e elegante", explica Judith Lewis Herman
em "Trauma and Recovery". "Depois de cada atrocidade, podem-se
esperar ouvir as mesmas desculpas previsíveis: jamais aconteceu; a vítima
mente; a vítima exagera; a vítima que provocou isso; e em todos os casos é o
momento de esquecer o passado e seguir em frente."
O
problema é que a cultura do estupro está tão enraizada na sociedade em que
vivemos que não é só o agressor que apresenta tal comportamento: profissionais
da saúde e da lei também o reproduzem. No relato que deu ao Fantástico, a
vítima do estupro coletivo no Rio de Janeiro contou que foi interrogada por
vários homens que expuseram imagens do crime para ela, além de realizarem
questionamentos absurdos como se já tinha feito sexo grupal. "É fácil
esquecer que o dano causado a uma vítima de estupro que é desacreditada pode
ser no mínimo tão devastador quanto o dano causado a um homem inocente que é
injustamente acusado de estupro", aponta Jon Krakauer em Missoula.
"E, sem dúvida, o segundo caso acontece com muito mais frequência."
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